A africanidade é, no meu caso, essencial, é algo que conforma tudo aquilo que eu sou.
Nasci em Luanda. Fui menina e jovem em Angola. Há uma camada minha que remete para aí, em permanência. E não são só memórias. A africanidade é, no meu caso, essencial. Não é só uma origem ocasional mas algo que, de certa forma, conforma tudo aquilo que eu sou.
Mais do que amargura ou tristeza, sinto uma identificação com Angola. Não aconteceram só coisas boas, mas olho para trás e encontro sempre uma felicidade transbordante, uma vida boa. É estranho, mas mesmo quando escalpelizo os factos e encontro coisas que foram objetivamente muito más, não consigo deixar de ver a minha infância e adolescência como tempos gloriosos.
As recordações mais felizes são da primeira infância, numa vila piscatória que, apesar de ser calma, pacata e tranquila, é também a minha metrópole, a minha capital, o meu centro. Lembro-me das reuniões dos funcionários públicos, que socializavam muito nas casas uns dos outros. Havia um sentido de comunidade, beleza e harmonia. As pessoas congregavam-se e havia uma espécie de corrente de felicidade.
Uma vila piscatória, calma, pacata e tranquila que é também a minha metrópole, a minha capital, o meu centro.
Quando vejo fotografias desse tempo, vejo senhoras lindíssimas. A maior parte delas eram domésticas, tinham filhos, como é que podiam ser assim? Têm um ar radioso e feliz. A vida transborda daquelas imagens, mesmo quando descubro que têm por trás dramas pessoais terríveis.
Recordo-me da primeira vez que fui de Novo Redondo para Luanda. Ficámos na Rua João das Regras, ainda hoje um local mítico para mim. Lembro-me dos vizinhos que nos receberam e dos doces que a minha lhes oferecia em retribuição. Era assim que as relações se criavam.
O meu avô paterno era um grande ativista dedicado à causa do nacionalismo e direitos civis.
Sou a mais nova de seis irmãos, a minha família é numerosa e muito unida. E sempre uma família com grande consciência social e política. O meu avô paterno era um grande ativista e fundador de um jornal dedicado à causa do nacionalismo, numa altura em que se debatiam sobretudo questões de direitos civis.
Sempre ouvi em casa histórias da deportação do meu avô. Eram histórias épicas em que a casa toda se mudava. Eram acontecimentos muito tristes para todos, mas também conseguia ouvir aquelas histórias como se fossem um romance. São coisas que se sabem pelo que ficou escrito e pelos relatos orais. E foi com esses relatos que fui crescendo: estórias da criação e das reuniões da Liga Nacional Africana. Algumas dramáticas, outras de morrer a rir.
Quando a minha mãe se foi embora, a minha avó dizia, à mesa de jantar, em Kimbundu, “eu como, mas estou a chorar”.
Conheço apenas palavras avulsas em línguas africanas, tenho muita pena de não saber mais. A minha mãe percebe Kimbundu, mas o meu pai não. Era a língua materna da minha avó, que insistia que os filhos aprendessem, para que percebessem caso alguém insultasse os pais na rua! Eu dizia à minha avó que preferia não entender esses insultos. Quando a minha mãe se foi embora, a minha avó dizia à mesa de jantar, em Kimbundu, “eu como, mas estou a chorar”.
Hoje tenho pena de não saber mais. O estatuto do indígena, criado pela República, proibia que se falassem línguas nacionais, o que foi uma enorme brutalidade. Testava-se o conhecimento de línguas nacionais, que pontuava negativamente os candidatos à função pública. Por esse motivo, houve muitas pessoas que cortaram com a língua para obter o estatuto de assimilado.
Quando vim estudar para Lisboa com dezassete anos, em 1973, vim para uma parcela do território nacional. Independentemente da nossa consciência da luta pela independência, vim para o mesmo espaço nacional, e deslocava-me como um estudante do interior que vem para Lisboa estudar. Hoje quem vem viver para Portugal faz um corte com a vida anterior. Cria aqui uma etapa nova, enfrenta o desconhecido numa perspetiva de futuro sem retorno, a perspetiva de quem emigra. Está numa situação de maior fragilidade, porque quebrou tudo o que tinha do outro lado.
Para mim, houve especialmente um choque de costumes.
Para mim, houve especialmente um choque de costumes. O ambiente nas cidades coloniais não era nada linear. Eram cidades muito complexas, repletas de dificuldades. Mas eram e continuam a ser muito conviviais. São sociedades abertas, nesse sentido: convívio, relações familiares, relações de vizinhança, de trabalho, de proximidade. Em Portugal é comum que as pessoas trabalhem juntas durante anos sem se encontrarem fora do local de trabalho. Na África que eu conheço, não se consegue viver assim. Há uma partilha e comunhão maiores. Para quem chega, esta é uma terra diferente, com clima diferente, com problemas de inscrição no mercado de trabalho e com problemas de inscrição social e até ao nível de vizinhança.
Hoje há uma comunidade de afrodescendentes relativamente grande em Portugal. Há, por outro lado, muitas pessoas que passaram por África e que têm uma relação com África. E isso torna as coisas diferentes. A paisagem antropológica já não dá uma sensação tão forte de isolamento e de unicidade, o que permite uma maior identificação.
Conversa em 8 de novembro 2016
O Projeto Estórias: Portugal -África agradece a disponibilidade da Senhora Ministra da Justiça e a assistência prestada pelo seu Gabinete.