Sou a quinta geração desde a minha trisavó a nascer em África. Assumi sempre as minhas raízes naquele continente, das quais me orgulho muito. Mas, por outro lado, sou europeu.
A minha vida, sem eu me ter apercebido de inicio, estava já delineada por fatores que estiveram desde sempre em mim. Eu sempre soube que era o resultado de muita multiculturalidade. Sempre soube das minhas origens tradicionais portuguesas do lado do meu pai, descendente dos Távoras. Mas também, pelo lado da minha mãe, das raízes francesas, holandesas, brasileiras e de Cabinda. Por isso desde pequenino, nas festas de família, em Luanda, onde nasci, a questão da cor nunca se pôs.
A minha bisavó era mulata, filha de uma princesa de Cabinda e de um brasileiro, Manoel António da Silva, que depois é honorificamente feito príncipe valente de Cabinda, presença testemunhal do tratado de Simulambuco. A minha bisavó vem estudar para Lisboa com 5 anos e só regressa a Angola com 21, para casar com um aristocrata e diplomata holandês de origens francesas, o meu bisavô Jacob. Conheci a minha bisavó ainda, mas não o meu bisavô que morre em 1837 em Antuérpia.
Sou a quinta geração desde a minha trisavó a nascer em África. Assumi sempre as minhas raízes naquele continente, das quais me orgulho muito. Mas, por outro lado, sou europeu. Fui educado sempre com consciência das minhas origens. Consciente da minha trisavó que era princesa do Quicongo, um dos três grandes reinos que formam Cabinda. Consciente que o meu trisavô brasileiro foi um dos facilitadores do Tratado de Simulambuco, que faz com que os príncipes de Cabinda se ponham sob protetorado do reino de Portugal, tratado que é assinado numa feitoria dele. Mas também consciente das minhas raízes europeias. Em casa do meu pai, fomos educados pela cultura tradicional portuguesa. Era a cultura do meu pai, que fazia questão que os filhos fossem educados assim. Nunca se falavam línguas indígenas. Só aprendi a falar uma língua africana mais tarde, no Congo, o Lingala, que pratiquei quando lá vivi 3 anos. Quando estou em África e falo com africanos, saliento sempre que também o sou, não tenho qualquer complexo. A cor da pele não tem influência nenhuma. Mas quando estou na Europa, também sou um europeu de gema.
Eu já tinha 3 continentes e 5 países dentro de mim antes de nascer.
Sabe-se hoje em dia que se a Humanidade nasceu algures, esse Éden está no Vale do Rifte. Eu próprio já percorri uma grande parte desse vale que vai desde do Sul do Sudão até ao Burundi, passando pelo Quénia, Tanzânia, Uganda, Etiópia... Em Abis Abeba vi o esqueleto recomposto da Suzy, que dizem ter sido a nossa antepassada há 3,6 milhões de anos. E daí se fez a diáspora dos humanóides para a Ásia e a Europa. E para o interior de África também.
África está sempre em mim, e não só porque lá nasci e pela minha ascendência. Geneticamente, eu sou 6,25% africano, o que corresponde a uma trisavó. Mas porque daquele continente, conheço quase todos os países. Dos 54 países, só não conheço meia dúzia. É um continente que amo muito. Mas também um continente, e especialmente Angola, com o qual tenho uma relação dúbia, de alegria e frustração. Porque aquele continente, por múltiplas razões, não se realizou até hoje.
Nós somos resultado dos nossos genes e de várias circunstâncias da vida. Somos uma simbiose de tudo isso. E eu já tinha 3 continentes e 5 países dentro de mim antes de nascer. Já estava destinado a saltitar de um lado para o outro.
Costumo dizer que sou um embondeiro nascido numa ilha mítica, algures no meio do Atlântico, onde se cruzam as minhas origens, e de onde nasci, talvez, já com um sonho. Todos temos percursos singulares, mas porque é que tive sempre essa vontade de andar pelo mundo? É uma identidade portuguesa, sem dúvida, mas que nunca recusou e nunca recusa todas as outras componentes que tenho integradas em mim. Sou esse aglomerado de raízes e culturas.
O meu sonho era ter um hospital em África, no mato.
Mas são também as circunstâncias da vida de cada um que contam. Como a Medicina, no meu caso. O meu sonho era ter um hospital em África, no mato. Sonho com isso desde pequeno. Sempre quis ser médico. Quando tinha 15 anos ainda pensei fazer Pintura, nas Belas Artes, mas o sonho primeiro impôs-se e fiz Medicina. Mas a arte africana está em mim, e tento ser um conhecedor das máscaras, das esculturas…
Fui para a Bélgica quando tinha 15 anos. Foi o primeiro país da Europa que conheci, antes mesmo de Portugal. O meu pai era industrial em Angola, depois mudou-se para o Congo e nós fomos com ele. Só volto a Portugal um ano depois do 25 de Abril.
Sempre que pensei em Medicina, pensei em exercê-la em África, num hospital no mato. Era esse o meu sonho primeiro. Formei-me no ano das Independências. Lembro-me de ter escrito a uma prima da minha mãe, mestiça, médica, que estava em Angola, a expressar o meu desejo de voltar para lá. Depois da Medicina tirei as duas especialidades - cirurgia geral e urologia - mas sempre com o sonho de fazer uma Medicina diferente. Embora o meu pai quisesse que eu seguisse a minha carreira docente e universitária em Bruxelas e que fosse, um dia, o que eu teria acabado por ser: professor catedrático de cirurgia. Era o que o meu pai sempre me dizia nas cartas, quando comecei a fazer as missões humanitárias pelo mundo, muitas vezes em guerras. Lembro-me de uma carta que dizia, “O meu filho já mostrou que é corajoso, agora tenha juízo e ocupe-se da sua família e da sua carreira universitária”. Já tinha dois filhos nessa altura.
Uma oportunidade de fazer uma medicina diferente.
Em 1975 não consegui regressar a Angola e realizar o meu sonho primeiro, que era abrir um hospital no mato com irmãs religiosas, que fosse funcional, limpo e bem gerido. Tomei então conhecimento de uma instituição que estava a nascer: os Médicos Sem Fronteiras. As missões que acabo por fazer com eles foram o sucedâneo de um primeiro ideal, uma oportunidade de fazer uma medicina diferente. Mas estava longe de imaginar que aquela pequena estrada que começava a percorrer se iria transformar na autoestrada da minha vida, que tudo indicava ser o meio académico. Era uma perninha que ia fazendo nos períodos de férias. Juntava os períodos de recobro das urgências de todo o ano. Eram dois meses, que juntava a mais um de férias. Nesses três meses partia em missão: Ankara - Irão - Iraque. Ankara – Chade - Líbia. Darfur… Ia fazer uma cirurgia diferente, muitas vezes de guerra. E às vezes os caminhos fazem-se sem sabermos bem porquê.
No decurso de uma missão em que passava clandestinamente do Darfur para o Chade, tomei uma posição de defesa de um grupo de jornalistas de uma revista francesa. Como reconhecimento, na sua grande reportagem sobre a guerra entre o Chade e a Líbia, esses jornalistas publicaram uma fotografia em que eu estava a operar numa tenda, acompanhada da legenda, “Fernando, jovem cirurgião de origem portuguesa…”. Essa reportagem cai nas mãos da equipa do Barata Feio que procura saber quem é esse português. A revista sai em 1982. Sai, então, uma grande reportagem, que tem bastante impacto. O ministro da Saúde liga-me para Bruxelas, diz-me que me quer conhecer. Pergunta-me porque não lanço um movimento semelhante dirigido a Portugal. Estávamos em 1983, a saúde nas periferias não era o que é hoje. Mas porque não criar um movimento internacionalista? Foi isso que me trouxe a Portugal. Fundei a AMI quando ainda estava em Bruxelas, em dezembro de 1984.
Não sabia na altura que a AMI, continuando a ser uma gotinha de água, ia conseguir que fossem investidos 100 milhões em projetos, 35 milhões no internacional e 65 milhões em Portugal, onde temos uma forte componente social de apoio à luta contra a pobreza e a exclusão social. Que ia conseguir montar intervenções em mais de 80 países, com 16 equipamentos sociais em Portugal. Lembro-me de telefonemas que recebemos depois de certas intervenções únicas, como a arquiteta Helena Roseta, que na sequencia do tsunami, me disse que a AMI é o orgulho de Portugal, ou o Miguel Sousa Tavares que disse que a AMI é o maior representante externo de Portugal. Não há mês em que não vá a África. Ainda há dias regressei do Gana e de São Tomé, mas daqui a 3 dias já vou para Moçambique, e daí para Madagáscar. Temos projetos humanitários e de desenvolvimento no quadro da fundação AMI em mais de vinte países.
Conversa em 10 de novembro de 2016
O Projeto Estórias: Portugal – África agradece a disponibilidade do Prof. Dr. Fernando Nobre e a assistência prestada pela equipa na sede da AMI, em Lisboa.