Após a Segunda Guerra Mundial os grandes textos das instituições internacionais que fundavam a nova ordem internacional clamavam pela libertação total dos povos, nomeadamente a Carta das Nações Unidas de 1946 que apelava ao início dos processos de autonomia e independência dos povos colonizados. Em 1947, face à pressão dos movimentos nacionalistas, os britânicos reconheceram a independência da Índia, e da Palestina, em 1948, os holandeses, em 1949, a Indonésia, os franceses iniciavam a guerra na Indochina e por todo o hemisfério Sul tinham lugar lutas e reivindicações que deram início a um dos movimentos mais reestruturantes e revolucionários do mundo contemporâneo, primeiro na Ásia e depois em África – a descolonização. A descolonização, vista por políticos franceses como Michel Debré e Guy Mollet ou por intelectuais como Pierre Nora ou André Malraux como uma “corrente da História”, ou como os “ventos de mudança”, no discurso programático do primeiro-ministro britânico Harold Macmillan em Fevereiro de 1960 no parlamento da União Sul-Africana, e, como uma não questão para o Portugal de Salazar, era vista pelos outros, os povos colonizados, como necessária, urgente e como um direito dos povos a tomarem nas suas mãos o seu próprio destino. Assim os processos de descolonização sucederam-se e redefiniu-se o mundo contemporâneo, num dos primeiros grandes movimentos globais da pós-modernidade. De facto este não foi um movimento único e homogéneo, nem resultado dos acordos internacionais entre as metrópoles colonizadoras europeias e as grandes potências que emergiram no pós-guerra, os Estados Unidos da América e a antiga União Soviética. Tratou-se sobretudo de um longo processo de consciencialização política local e regional que regista os seus inícios legíveis nas primeiras décadas do século XX a que a grandeza da Primeira Guerra não foi estranha, pois nela muitos impérios se desfaziam e nela participaram muitos africanos e asiáticos chamados ao combate em nome das suas metrópoles. Seguiram-se, no pós Segunda Guerra Mundial, particularmente no final dos anos 50 e 60 várias reuniões internacionais de povos do Sul, apoiadas pela nova ordem internacional; relatórios e denúncias de situações de trabalho forçado e racismo, quer por organizações internacionais, quer por elites locais; sublevações de vária ordem no campo e nas cidades dos países colonizados, que muitas vezes terminavam em grandes massacres, prisões arbitrárias e mortes; afirmações de diferença cultural e política em textos literários e políticos escritos por elites urbanas asiáticas e africanas; textos programáticos dos grandes políticos africanos que traçavam os protocolos da luta; tentativas de diálogo com as elites governativas e com as próprias metrópoles; lutas e guerras. De formas quase sempre conflituosa e penosa, os povos colonizados conquistaram as suas independências e destaco aqui dois conflitos bélicos longos e de consequências particularmente graves – a guerra da Argélia, no caso franco-argelino (1954-1961), e as guerras coloniais entre Portugal e as suas colónias africanas (1961-1974). Tratou-se de muitas lutas vertidas em texto num grande e doloroso livro escrito na contracorrente da história nos espaços da clandestinidade, da prisão, do exílio, do mato e da futura nação libertada.
Os processos de descolonização constituíram portanto um fenómeno capital da história do século XX provocando grandes ruturas de consequências imediatas – as independências e a construção das novas nações e o retorno dos países europeus colonizadores à sua geografia europeia – e outras bastante prolongadas no tempo e que hoje se refletem nas gerações seguintes. Por isso e como assinala Anne Loomba os tempos que vivemos hoje são póscoloniais, mas não somos pós-coloniais no mesmo sentido (1998: 19). Nos países anteriormente colonizados, o pós-colonialismo tem a ver com a transferência de governo, com mecanismos de substituição da antiga ordem pelo neo-colonialismo (o último estádio do colonialismo nas palavras do líder ganês Kawane Nakrumah), com revoluções e orientações de feição socialista com grande espaço de cooperação dos antigos países pró-soviético, com guerras civis, bem como de algum desencontro entre os ideais preconizados pelas elites urbanas que dominavam os movimentos de libertação e os interesses do povo propriamente dito. Nas antigas metrópoles o processo de descolonização liga-se ao retorno ou deslocação de grandes contingentes de população das antigas colónias e ao refazer de um espaço e de uma imagem nacional que deveria integrar as populações e as diferenças que a sua aventura imperial produziu como parte de uma sociedade multicultural que emerge da descolonização. De um ponto de vista externo a descolonização liga-se ao redesenhar da geopolítica europeia e mundial com o declínio do poder das antigas metrópoles europeias e a sua associação na Europa comunitária, já não e apenas para construir um futuro de paz sobre a memória da Segunda Guerra Mundial, mas também para fazer face ao vazio de sentido e de centralidade trazido pelas descolonizações, em relação às duas hegemonias saídas do pós Segunda Guerra Mundial. O pós-colonialismo designa, assim, um processo global com alguns dados comuns de onde emergem a multiplicidade de histórias e de perspetivas que explicam e imaginam o mundo contemporâneo. No caso português pós-colonialismo está intimamente ligado ao 25 de Abril de 1974, e portanto ao pós-salazarismo/caetanismo, com o início de uma vivência democrática, de exercício pleno dos direitos de cidadania e de escrita e informação livres. Com o 25 de Abril de 1974 findava o Portugal imperial de cinco séculos de existência real e imaginada, e, particularmente, o Portugal colonizador das terras de África e a Guerra Colonial, a mais extensa de África. Descolonizar era uma palavra de ordem do Movimento das Forças Armadas a par de democratizar e de desenvolver. Após rápidas negociações Portugal assinaria com Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe e Cabo Verde os acordos da independência e em 1975, portanto praticamente após um ano do 25 de Abril de 1974, estes países eram independentes.
Loomba, Ania, Colonialism/ Postcolonialism, London/ New York: Routledge, 1998.
Ribeiro, Margarida Calafate, Uma História de Regressos – império, guerra colonial e pós-colonialismo, Porto: Afrontamento, 2004.
Shepard, Todd (2008), 1962 – Comment l´indépendance de l´Algérie a transformé la France, Paris: Payot.
Margarida Calafate Ribeiro
Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra.
Memoirs – Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias, ERC, 2015-2020
Este texto resulta do trabalho desenvolvido pelo projeto MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (ERC) no quadro do Horizonte 2020, programa para a investigação e inovação da União Europeia (contrato nº 648624).