Cartografia afro-lusa

de Cultura, Língua e Artes

Etnicidade (2017) #Espistemologias #etnicidade #Modernidade

Evolução conceptual relativa ao contexto Africano

O conceito de etnicidade é de difícil definição porque se manifesta em várias dimensões da vida humana, o que lhe atribui uma relevância muito central nas sociedades modernas contemporâneas (ver Hutchinson e Smith, 1996). Se para públicos não académicos o termo comummente designa construções raciais, assim excluindo outras categorias que definem etnicidade como religião, língua ou região de origem, entre outras, existe uma vaga de interesse de cientistas sociais que desde os anos 60 do século passado, sobretudo na antropologia social e cultural, vêm debatendo este conceito, que evoluiu para uma complexidade tal que exige explicação própria. É isso que tentarei aqui resumir, equacionando a evolução dos estudos e entendimentos sobre etnicidade no contexto Africano.

John Lonsdale escreve que a etnicidade descreve um instinto humano comum em criar dos hábitos quotidianos de interação social e laboral, um sistema de significados morais e de reputação dentro de uma comunidade mais ou menos imaginada, assumindo simultaneamente que a natureza e variabilidade da etnicidade permite que conceitos antigos, porventura tradicionais, se sobreponham e continuem a reaparecer (Lonsdale, 1994). Esta noção de etnicidade como fronteira de uma comunidade moral, publicada em 1992 e que Lonsdale apelida de etnicidade moral, representa ainda hoje o conceito mais viável para debater e escrever sobre etnicidade. Porém, nem sempre o entendimento de etnicidade se pautou por uma abordagem tão matizada.

As primeiras abordagens ao conceito de etnicidade, sobretudo em relação ao continente Africano, apoiaram-se muito substancialmente nas teorias da modernização, que defendiam a dissolução dos grupos étnicos africanos, na altura erradamente apelidados de tribos, nas novas e modernas nações Africanas, que se tornavam independentes na mesma década que o conceito de etnicidade começava a ser trabalhado e problematizado. Porém, ainda nos anos 50 alguns académicos rompem a sentença fatal a que a teoria da modernização havia sujeito a etnicidade, dizendo que não só não estava destinada a desaparecer, como de facto se tornava um abrigo que as populações poderiam utilizar para fugir às pressões do estado moderno, refugiando-se nos seus grupos étnicos como comunidade de suporte e solidariedade social. Outros autores vêm argumentar que a etnicidade é de facto um produto do estado colonial e das suas estratégias de dividir para reinar (Iliffe, 1979). Ao produzir uma divisão do sujeito colonial baseado na sua etnicidade, que informaria a sua predisposição laboral, o colonialismo incentivou identificações locais e regionais, e não nacionais, que privilegiaram identificações de cariz étnico. A conclusão deste argumento é a de que através de divisões étnicas inventadas e construídas, os grupos poderiam ser instrumentalizados pelo poder colonial, retirando a possibilidade de agência de cariz étnico. Já nos anos 70 e 80 o discurso académico foca-se em grande medida em perspectivas estruturalistas e materialistas Marxistas para interpretar conceitos como etnicidade. Elementos relacionados com classe, dependência ou economia política foram adicionados às problematizações existentes sobre etnicidade, concluindo que esta representava uma consciência falsa, que devia ser trivializada e descartada. Ignorando a força emotiva que o conceito invoca, a abordagem materialista não é passível de ser genericamente aplicada ao contexto Africano, já que para além de não ser representativa de dinâmicas pré-coloniais, exponenciava substancialmente uma hipotética divisão das sociedades Africanas em classes, algo que não se verificava na realidade. Finalmente, nos anos 90, influenciados por um boom de publicações sobre nação e nacionalismo, alguns académicos começaram a equacionar etnicidade com nacionalismo, dando ênfase a elementos modernos, principalmente ao papel da massificação da literacia na imaginação da comunidade. Baseando-se numa perspectiva construtivista, estes cientistas sociais começaram a escrutinar o impacto que processos de modernidade – distintos da teoria da modernização – produziram na etnicidade através das estruturas coloniais impostas no continente Africano. Equacionar etnicidade com nacionalismo permitiu entender a primeira como um processo de busca e manifestação de poder político, desta forma abrindo caminho para a análise de formas de politização internas, algo inovador no quadro de estudos da etnicidade, até então sempre entendida como uma produção opaca, nunca revelando os processos internos que John Lonsdale et.al. vêm divulgar. Lonsdale fá-lo olhando para elementos de moralidade, virtude, reputação e desigualdade como elementos centrais no diálogo interno das sociedades Africanas. Baseado na asserção de que as nações, e, por conseguinte, os grupos étnicos, são um plesbicito diário, este autor argumenta que também os grupos étnicos e a etnicidade representam arenas morais de debate político, onde se debate a cidadania, a liderança e a representação em termos étnicos, por forma a esgrimir a desigualdade e promover o funcionamento da comunidade. Refere-se, portanto, às formas comunitárias ou nacionais de debater aqueles problemas que mais agitam ou ameaçam os grupos e os estados, sejam problemas financeiros e económicos, sociais ou políticos. A título de exemplo, as formas como em Portugal se debatem as desigualdades financeiras que agitam politicamente o país, difere certamente das de outras sociedades pelo percurso histórico que o caracteriza, pelas suas disputas ideológicas e fracturas sociais. É o produto deste debate, que informará a identidade fluída dos grupos e das nações, que Lonsdale diz ser o ponto nevrálgico da etnicidade. É, portanto, um conceito muito mais abrangente que apenas uma construção racial, linguística, religiosa ou regional. A evolução do estudo da etnicidade mostra-nos que os debates internos moldam a forma como as comunidades se posicionam sobre determinado tema, assim lapidando a sua própria identidade de grupo.

 

 

Referências:

Hutchinson, J. e Smith, A. D. (orgs.). (1996). Ethnicity. Oxford: Oxford University Press.

Iliffe, J. (1979). A Modern History of Tanganyika. Cambridge: Cambridge University Press.

Lonsdale, J. (1994). «Moral ethnicity and political tribalism», in Prebem Kaarsholm and Jan Hultin (orgs.). Inventions and boundaries: historical and anthropological approaches to the study of ethnicity and nationalism, Roskilde: International Development Studies, Roskilde University.

 

 

Vasco Martins

Centro de Estudos Sociais-Universidade de Coimbra. Projeto CROME – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio. As guerras coloniais e de libertação em tempos pós coloniais (European Research Council, StG 715593).