Cartografia afro-lusa

de Cultura, Língua e Artes

Hibridismo cultural (2017) #Artes

Hibridismo cultural apresenta-se como um conceito composto que remete para uma dinâmica de mistura de componentes de ordens distintas, que aqui é enquadrada pela noção cultural. Com este conceito procura-se delimitar o hibridismo produzido pelo encontro entre culturas distintas, onde se geram, muitas vezes, a uma escala macro, as culturas in-between (Bhabha 1994), as terceiras culturas (Featherstone, 1990) ou culturas híbridas (Canclini 1990) e, a uma escala micro, as identidades híbridas, hifenizadas (Almeida 2010). Essa hibridação que tem por móbil o encontro promovido pelas viagens e trânsitos culturais, assimilações, sincretismos, incorporações, canibalizações culturais, e que pode acontecer por via de contactos conflituais ou pacíficos, por via intencional ou não intencional ou orgânica (Bakhtin 1968, 2004), e que se espelha nas práticas, nas expressões, nos termos, nos costumes, na religião, tem vindo, desde os anos 90 do século XX, a ser analisada como um "hibridismo estrutural", como o denomina Pieterse, num processo identificado num primeiro momento, como se apresenta no texto "Globalization as hybridization" (1994), intrinsecamente ligado ao advento da modernidade/globalização, mas que numa análise posterior, desenvolvida no texto "Hybridity, so what?" (2001), este autor expandiu estruturalmente para uma dinâmica "tão velha como o mundo". Resultando este texto de uma defesa analítica do hibridismo em relação a críticas sobre o conceito que lhe foram aduzidas por Friedman (1999), Pieterse vai mais longe que autores como Canclini ou Laplantine e Nouss, que embora com expressões diferentes - o primeiro, utilizando o termo hibridismo (Canclini, 2000), o segundo, mestiçagem (Leplantine e Nous 1997, 2001) - identificam esse movimento de contactos, que se poderia chamar transcontinental, com um outro continental, emergente nas cidades, com expressão desde a antiguidade e evidenciado no Mediterrâneo. Em Le Métissage (1997), o Mediterrâneo é visto por Leplantine e Nouss como o primeiro entreposto do mundo mestiço; como crisol cultural que haveria de dar origem à Europa resultante de múltiplas migrações milenares, sob a forma de invasões, de conquistas, confrontos, perseguições, massacres, pilhagens e degredos, mas também de trocas, comparações e de diferentes tipos de transformações. Segundo estes autores, várias personagens concorrem para esta mistura; uma delas é Alexandre, O Grande, que desenvolveu diversas práticas para fomentar intencionalmente essa mistura cultural entre Ocidente e Oriente, dando ele próprio o exemplo: adoptou integralmente elementos de culturas não helénicas, como o direito penal e o cerimonial da corte, falava persa e vestia-se como os persas, além de ter organizado casamentos coletivos de soldados gregos e mulheres asiáticas, tendo também ele casado com uma asiática.

Mas, efectivamente, para além do hibridismo contemporâneo, colonial ou pré-colonial, Pieterse refere-se também à pré-história, onde identifica (através de estudos de arqueólogos) uma origem comum em África, confirmando assim que a humanidade é uma espécie híbrida. Encontra ainda inúmeras evidências desse hibridismo, como a rapidez da difusão das tecnologias, muito antes do século XVIII, ou a rapidez da difusão das línguas, religiões, doenças, símbolos; e identifica esse hibridismo em fenómenos tão distintos como nos diferentes modos de produção, regiões, zonas ou cidades. O autor apresenta mesmo uma sistematização onde compara o hibridismo actual, emergente a partir da década de 80 do século XX, e o hibridismo que denomina de antigo, considerando que na contemporaneidade existe uma maior reflexividade e intencionalidade na "construção" dos processos, produtos e coisas híbridas. Substitui-se assim a ideia da história enquanto collage, pela ideia de história como sampler (Madeira 2010), ou seja, um motor em que a história serve ela própria para criar novos híbridos.

São vários os autores que mais recentemente se têm vindo a dedicar ao tema. Marwan M. Kraidy em "Hybridity or the Cultural Logic of Globalization" (2005) ou Peter Burke em "Cultural Hybridity" (2009), por exemplo, começam por identificar os problemas inerentes ao termo. No prefácio do seu livro, Kraidy refere que o hibridismo é uma "noção arriscada", "sem garantias", que em vez de se constituir como um conceito unitário, remete para a associação de ideias, conceitos e temas que podem traduzir-se no emprego vazio do hibridismo como uma descrição universal de cultura" (2005: vi). Por sua vez, Burke descreve o termo como "irritantemente elástico" (2009:1). Apesar desse carácter vago e de poder reportar para processos muito diferenciados, que foram sendo cunhados por expressões diferentes, os diversos autores são unânimes em considerar que apesar de ter de ser sistematicamente contextualizado (numa prática, num local, num processo, numa coisa, etc.) o tema surge como "natural" num período contemporâneo marcado pela amplificação de encontros culturais de todos os tipos.

Esse processo contemporâneo que tem a ver com a globalização, e que reporta para uma tensão entre heterogeneidade/ homogeneização cultural, constitui-se, também, numa noção temporal amplificada, onde se inscrevem "ciclos híbridos" 1, ou seja, onde, de acordo com Brian Stross (1999), se alternam ciclos que variam entre formas mais ou menos heterogéneas, nenhuma das quais pode ser considerada uma simples reprodução do processo recuperado. Sendo que, ainda segundo o autor, essas formas não se referem necessariamente a um enquadramento linear em todas as esferas do social ou dos contextos culturais. Nas palavras deste autor: “Nós podemos (…) examinar assim o processo diacrónico alargado do que pode ser chamado 'ciclo de hibridismo': um ciclo que vai de uma forma 'híbrida', de relativa heterogeneidade, para uma maior homogeneidade, e que depois retorna novamente a uma maior heterogeneidade" (1999: 265). Mas a questão temporal não se esgota apenas na ciclicidade entre tempos mais ou menos heterogéneos, mas também na acumulação ou sobreposição de categorias e conceitos, sendo que o hibridismo, enquanto conceito teórico, influi, muitas vezes, na recuperação das problemáticas do colonialismo e pós-colonialismo para as voltar a discutir. É o caso das "culturas crioulas" e das "culturas mestiças" entre Portugal/ África ou Portugal/Brasil, de que se destacam as abordagens produzidas na literatura, de Mia Couto, por exemplo, presente desde logo no título do seu livro de contos denominado "Cada homem é uma raça" (1990), ou nas novas abordagens, por exemplo, sobre o racismo e a escravatura que vêm sendo desenvolvidas por Achille Mbembe em Crítica da Razão Negra (2014).

O hibridismo cultural surge ainda como a matriz de onde são geradas as identidades híbridas ou hifenizadas (das quais surgem categorias como afrodescendentes, lusodescendentes, luso-americanos, afroamericanos, etc.)

Se hoje é relativamente pacífico afirmar que todas as identidades são híbridas porque participam numa dinâmica onde o aspiracional tende a sobrepor-se em relação às âncoras identitárias tradicionais (de classe, profissão, de nação ou género, etc.) os processos migratórios massivos têm provocado alterações em termos de identidade, consoante, por exemplo, o grau de integração e assimilação dos migrantes nas sociedades de acolhimento (sendo mobilizada, pelo indivíduo migrante, uma multiplicidade de identidades étnicas de acordo com as diversas situações produzidas na vida social). É principalmente neste terreno que têm sido produzidas mais análises sobre identidades híbridas como as defendidas por Bhabba (1994), Hall (1997), Hannerz (1997), Appadurai (1994) ou expressas por escritores como Amim Maalouf em Identidades Assassinas (1999) e Salman Rushdie em Versículos satânicos (1989). O longo excerto autobiográfico com que Maalouf se apresenta no seu livro espelha bem essas identidades diaspóricas, que mais do que identidades sociais se traduzem essencialmente em sínteses pessoais (Madeira 2010:80-81). O autor responde nesse excerto à questão que continuamente lhe colocam, se tem uma identidade fragmentada:

" (...) Metade francês e metade libanês? De modo algum! A identidade não se compartimenta, não se reparte em metades, nem em terços, nem se delimita em margens fechadas. Não tenho várias identidades, tenho apenas uma, feita de todos os elementos que a moldaram, segundo uma dosagem articular que nunca é a mesma de pessoa para pessoa" (Maalouf, 1999: 9-11).

Salman Rushdie, por seu turno, no seu livro de ensaios Pátrias Imaginárias responde às palavras “Visão do Todo: ou tudo o resto é desolação” com que John Fowles começa o seu romance Daniel Martin:

" (m)as os seres humanos não se apercebem das coisas no seu todo; nós não somos deuses, mas sim criaturas feridas, lentes rachadas, capazes apenas de perceções fraturadas. Seres parciais, em toda aceção da palavra. O sentido das coisas é um edifício frágil que construímos a partir de farrapos, dogmas, sofrimentos de infância, artigos de jornal, observações fortuitas, filmes antigos, esquemas vitórias, pessoas odiadas, pessoas amadas; talvez isto seja porque a nossa perceção daquilo que realmente importa se ergue sobre materiais inadequados que a defendemos acerrimamente, até à morte (Rushdie, 1994:27).

Autores como Mário Machaqueiro (2002) colocam estas "identidades diaspóricas" numa escala em trânsito permanente que pode ir desde o "cosmopolitismo" até à "zombificação" identitária.

Também o artista Guillermo Gómez-Pena identificou bem a complexidade das identidades híbridas, que ganham características multidimensionais e em devir, numa resposta que deu numa entrevista a um repórter mexicano:

“Repórter: Se gosta tanto do seu país, como diz, porque é que vive na Califórnia?
Gómez-Pena: Estou a desmexicar-me para mexicompreender-me...
Repórter: O que se considera então?
Gómez-Pena: Pós-México, pré-chicano, pan-latino, transnacional, arte-americano ... depende do dia da semana e do projeto em questão (citado em Canclini 2001:294).”

A generalização do híbrido como paradigma invasor (Madeira 2010) nas nossas sociedades contemporâneas leva-nos, contudo, também, a recolocar em perspetiva o poder de transgressão e subversivo do híbrido, em relação às oposições categoriais e à sua capacidade de fomentar a reflexividade e mudança social. Neste pressuposto, e tal como refere Pnina Webner, ainda que faça sentido "que os híbridos sejam percebidos como dotados com poderes únicos, maus ou bons, e que os momentos, espaços ou objectos híbridos sejam cercados com rituais elaborados, e cuidadosamente guardados e separados da realidade mundana" (2000: 1), não é possível deixar de questionar: "e se as misturas culturais e cruzamentos se tornarem rotina no contexto das tendências globalizantes? Isto diminui o poder transgressivo do híbrido? E se não diminuir, como é que a teoria pós-modernista continua a poder ser entendida, pelo menos, nos dois sentidos, de rotina híbrida e de poder transgressivo? E afinal, o que queremos dizer com hibridismo cultural quando a identidade é construída no prisma das incertezas pós-modernas que tornam até desajustada a noção de estranheza" (idem).

Esta questão apresenta-se hoje como o ponto nevrálgico entre uma retórica cosmopolita que acentua o hibridismo como diversidade, como estilo de vida, e uma perspetiva cultural, dinâmica e mutável, que promulga que a cultura sempre foi híbrida (Latour 1994).


1 Note-se que diversos autores desde a filosofia, à sociologia e antropologia até à economia e à ciência política vêm, desde o início do século XX, tratando a noção de ciclicidade histórica. Veja-se sobre este assunto Madeira 2012.

 

 

Referências:

Almeida, O. T. (2010), O Peso do Hífen – Ensaios sobre a experiência luso-americana, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais.

Appadurai, A. (2004), Dimensões Culturais da Cultura, Lisboa, Teorema.

Bhabha, H. (1994), The Location of Culture, London, Routledge

Bakhtin, M. (2004), The Dialogic Imagination, tradução Carly Emerson and Michael Hosquist, Austin, TX, University of California Press.

Bakhtin, M. (1968), Rabelais and his World, Cambridge, Massachusetts, London, The M.I.T. Press, Massachuttes Institute of Technology.

Burke, P. (2009), Cultural Hybridity, UK,/USA Polity Press.

Canclini, N. G. [2001 (1990)], Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar y Salir de la Modernidad, Barcelona, Editorial Paidós.

Couto, Mia (1999), Cada homem é uma raça, Lisboa, Caminho

Featherstone, M. (1990), “Moderno e Pós-Moderno – Definições e interpretações sociológicas”, in Revista Sociologia, Problemas e Práticas, nº 8.

Friedman, J. (1999), “The Hybridization of Roots and The Abhorrence of the Busch”, in M. Featherstone and S. Lash (org.), Spaces of Culture: City-Nation_World, London, SAGE.

Hall, S. (1997), Representation – Cultural Representations and Signifying Practices, London, Thousand Oaks, New Delhi, SAGE.

Hannerz, U. (1997), “Fluxos, Fronteiras, Híbridos: Palavras-chave da Antropologia Transnacional”, Revista Mana, 3 (1).

Kraidy, M. M. (2005), Hybridity or the Logic of Gloalization, Philadelphia, Temple University Press

Laplantine, F. e Nouss A. (2001), Métissages – de Arcimboldo à Zombi, Paris, Pauvert.

Laplantine, F. e Nouss, A. [2002 (1997)], A Mestiçagem, Lisboa, Edições PIAGET.

Latour, B. (1994), Jamais fomos modernos, Rio de Janeiro, Editora 34.

Madeira, C., (2010) Híbrido. Do mito ao paradigma Invasor? Lisboa; Mundos Sociais/ Coleção Questões de Partida.

Madeira, C. (2012), “The “return” of performance art from a glocal perspective”, Cadernos de Arte e Antropologia [Online], Vol. 1, No 2 | 2012, posto online no dia 01 Outubro 2012, consultado o 31 Julho 2017. URL : http://cadernosaa.revues.org/652 ; DOI : 10.4000/cadernosaa.652

Maalouf, A. (1999), As identidades Assassinas, Lisboa, Difel.

Machaqueiro, M. (2002), “Políticas de Identidade”, in Etnologia: Antropologia dos Processos Identitários, Nº 12-14.

Mbembe, A. (2014) Crítica da Razão Negra, Lisboa, Antígona.

Pieterse, J. N. (1994), “Globalisation as Hybridisation”, in International Sociology, Vol. 9, Nº 2, London, Thousand Oaks and New Delhi, SAGE, Junho.

Pieterse, J. N. (2001), “Hybridity, So What? The Anti-hybridity Backlash and the riddles of Recognition”, Theory, Culture & Society, Vol. 18 (2-3); London, Thousand Oaks and New Delhi, SAGE.

Rushdie, Salman (1994), Pátrias Imaginárias, Lisboa, Publicações Dom Quixote.

Stross, B. (1999) “Theorizing the Hybrid”. in The Journal of American Folklore, Vol. 112, No. 445: 254-267.

Werbner, P. (2001), “The Limits of cultura hybridity: on ritualmonsters, poetic license and contested post-colonial purification”, Royal Antropology Institute, 7, pp 133-152.

 

 

Cláudia Madeira