Cartografia afro-lusa

de Cultura, Língua e Artes

Lusotropicalismo (2017) #Espistemologias

O lusotropicalismo, ainda que enquanto conceito e pensamento seja relativamente recente, é provavelmente um dos imaginários coloniais que mais contribuiu para a imagem de unicidade do Império português ultramarino. O termo, cunhado e desenvolvido em vários textos e intervenções públicas do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) a partir dos anos 30, culminou nas suas obras Integração portuguesa nos trópicos (1958) e O luso e o trópico (1961). Tendo como referente a sociedade brasileira, debruçava-se sobre a relação de Portugal com os trópicos, argumentando que os portugueses foram melhores colonizadores, pois, sendo menos violentos, menos racistas e mais dispostos à miscigenação, deram origem a sociedades mestiças de harmonia racial. Tal dever-se-ia ao facto de o povo português ser ele próprio resultado de migrações e cruzamentos raciais e culturais com mouros e judeus.

Ora, os engodos do lusotropicalismos começam desde logo na visão idealizada tanto dos primeiros séculos de Portugal como da sociedade brasileira e de outros espaços coloniais portugueses de miscigenação. Como sabemos, a nação portuguesa formou-se imaginando-se cristã, antimuçulmana e antijudaica. A perseguição e expurgação de todo e qualquer elemento não-cristão traduziu-se na expulsão, subjugação e conversão dos mouros, bem como na violência antissemita que, com a Inquisição, se torna política oficial.

Na sua visão eufórica das sociedades mestiças que emergiram nos espaços colonias portugueses, Freyre perceciona os contactos sexuais subjacentes à miscigenação como prova de relações pacíficas sem preconceitos. Esta visão silencia os sistemas de opressão que moldavam, em grande parte, tais contactos e a sua dimensão sexista. Tratava-se na realidade de acesso do homem branco à sexualidade da mulher negra num contexto em que a constelação homem negro/mulher branca era estigmatizada e/ou perseguida. Olhemos para Luanda, cidade conhecida pela emergência de uma elite local mestiça no século XIX. Centro nevrálgico do tráfico de pessoas para as Américas, Luanda é também a base para a difusão do poder colonial português ao território que forma atualmente Angola. No seu romance histórico A gloriosa família (1997), Pepetela revisita pela ficção as origens da mestiçagem no contexto colonial. Se é certo que muitos relacionamentos nasceram de acordos entre europeus e chefes locais, e que muitos foram consentidos, a mestiçagem luandense resultava em grande parte de relações sexuais forçadas de europeus com mulheres negras capturadas e escravizadas. A abolição da escravatura não significou o fim deste sistema de exploração sexual. Uma análise crítica de um texto como Alguns aspectos dos musseques de Luanda (1948) de Júlio de Castro Lopo permite desvendar um profundo enredamento entre sexismo e racismo. Um narrador branco alterna entre o deleite pelo consumo sexual de jovens mestiças e o incómodo perante o drama destas mulheres filhas de pai branco desconhecido condenadas à prostituição. Em contrapartida, a exploração sexual de mulheres negras é totalmente naturalizada no seu discurso.

Também à mestiçagem brasileira subjaz um substrato escravocrata, bem como séculos de violência sobre as populações indígenas. Longe de qualquer harmonia racial, o Brasil desenvolveu-se como sociedade patriarcal em que a exploração laboral e sexual das mulheres negras foi pedra basilar na manutenção do sistema de opressão racial.

O regime português mostrou-se inicialmente pouco recetivo às teses de Freyre, precisamente por não partilhar a visão eufórica da mestiçagem (Castelo, 2013). A situação altera-se após a Segunda Guerra Mundial, quando o lusotropicalismo permite a Portugal, que anteriormente se aliara a Estados estruturados por ideologias da raça como o Terceiro Reich, reinventar-se como país não racista. Perante uma crescente pressão internacional para descolonizar, Portugal procede a uma revisão constitucional (1951) em que as colónias passam a ser designadas por “províncias ultramarinas”. As teses de Freyre permitiram à propaganda portuguesa proclamar Portugal como uma nação multicultural, multirracial e pluricontinental. Esta “fórmula mágica” visava “justificar a permanência de Portugal nas terras africanas, já não enquanto presença colonial, […], mas a caminho desse novo paradigma, o ‘paraíso lusotropical’ em construção” (Ribeiro, 2004: 155).

A expressão “Deus criou o branco e o negro, o português criou o mulato” mostra até que ponto o imaginário lusotropical se impregnou na sociedade portuguesa. O impacto de Freyre extravasou largamente o domínio da propaganda salazarista, penetrando no meio académico-científico e nos quadros da administração. Progressivamente uma “versão simplificada do lusotropicalismo foi entrando no imaginário nacional contribuindo para a consolidação da auto-imagem em que os portugueses melhor se revêem: a de um povo tolerante, fraterno, plástico e de vocação ecuménica” (Castelo, 2013). Ora, é sobretudo neste imaginário que os seus resquícios continuam a emergir repetidamente na sociedade portuguesa.

Se é certo que a crítica ao lusotropicalismo não deverá abrir caminho à celebração da autenticidade nem ao menosprezo pela mestiçagem, também é certo que as sociedades afetadas por tais teses não poderão ignorar o silenciamento de violências e opressões que tais discursos fomentaram, bem como o facto de a miscigenação no contexto colonial resultar, em grande parte, de uma conjuntura em que a sexualidade era vivida através do racismo.

 

 

Referências:

Geffray, Christian (1997), “Le lusotropicalisme comme discours de l’amour dans la servitude”, Lusotopie 1997, 361-372.

Castelo, Claudia (2013), “O lusotropicalismo e o colonialismo português tardio”, Buala, http://www.buala.org/pt/a-ler/o-luso-tropicalismo-e-o-colonialismo-portugues-tardio.

Ribeiro, Margarida Calafate (2004), Uma história de regressos. Império, Guerra Colonial e pós-colonialismo. Porto: Afrontamento.

 

 

Júlia Garraio

CES, Investigadora Memoirs – Filhos de império e pós-memórias europeias, ERC

Este texto resulta do trabalho desenvolvido pelo projeto MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (ERC) no quadro do Horizonte 2020, programa para a investigação e inovação da União Europeia (contrato nº 648624).