Após a Segunda Guerra Mundial ganharam visibilidade os movimentos, manifestações e escritos dos nacionalistas asiáticos e africanos que lutavam pela libertação dos seus países do jugo colonial que os amordaçava e, de forma mais alargada, do Sul Global. Trata-se de um dos movimentos globais de enorme impacto e transformação na geopolítica do mundo e que obedece, não apenas à lógica de libertação que se vai manifestando no pós-guerra e que atinge, o seu auge no final dos anos 60, mas também a uma substancial capacidade de estes espaços ganharem visibilidade e audição nos organismos internacionais. As raízes desta luta pela dignidade humana e liberdade têm fortes e antigas raízes nas sublevações seculares dos escravos e dos povos subjugados, para quem as campanhas de pacificação do colonialismo moderno foram brutais formas de imposição de uma ordem colonial a que sempre resistiram. Mas podemos genericamente dizer que a forma moderna e urbana dessas resistências ganha corpo nos anos 50, quando uma série de questões se começam a configurar sob a forma de uma organização política reconhecida em movimentos e partidos portadores de programas políticos concretos, vocalizados por líderes carismáticos. Trata-se de movimentos locais, mas com articulações regionais fortes – de onde emergem correntes como o pan-africanismo ou o pan-arabismo – e mundiais com grandes reuniões plenárias como foi Bandung, em 1953, mas também com grandes articulações continentais entre os países libertados do colonialismo ocidental e os territórios ainda em luta. É assim que Argel se configura como uma Meca do internacionalismo revolucionário, Addis Abeba, Dar es Salam ou Congo Brazaville como espaços de acolhimento de movimentos de libertação e de reuniões internacionais, animadas por grandes líderes e por pensamentos e textos que traçam linhas de programação, política e de imaginação criativa que vão de Franz Fanon a Senghor, de Albert Memmi a Amílcar Cabral, de Aimé Césaire a José Craveirinha, de Eduardo Mondlane a Nelson Mandela, de Luandino Vieira a Chinua Achebe, de Carmen Pereira a Deolinda Rodrigues, de Noémia de Sousa a Alda do Espírito Santo, só para citar alguns. Temas como o trabalho, o racismo, a falta de liberdade, a desigualdade, a subalternidade, as guerras de libertação, mas também a unidade, a força para a luta, a solidariedade entre os povos do chamado “terceiro mundo” povoam estes e muitos outros textos de luta pela dignificação do ser humano, mas na luta anti-colonial – ainda que tenha temas convergentes com as lutas da América Latina, com as lutas na América pelos direitos dos negros, ou as lutas dos anti-fascistas – o que estava em causa era a soberania do Estado, o direito dos povos colonizados ao seu território. Em termos de política global estes movimentos do chamado Terceiro Mundo obrigam as grandes potências a posicionarem-se em plena Guerra Fria. A União Soviética que antes se tinha oposto a muitos destes movimentos por os considerar estritamente nacionalistas e até burgueses pelas elites que os animavam, vai mudar radicalmente de posição nos anos 60, com Nikita Khrouchtchey a apoiar com grande entusiasmo a luta pela libertação dos povos na Ásia, África e América Latina, reconhecendo-lhes o estatuto de revolucionários. A partir de então os países socialistas colocam-se e vão redesenhar o seu mapa de influência cooperando com os movimentos de libertação e, mais atrde após as independências posicionando-se como países privilegiados com os novos países. Esta situação colocou a diplomacia americana numa posição delicada e intervencionista, clamando o seu estatuto de ex-colónia e de lutador pela liberdade dos povos, o que ao mesmo tempo que parecia jogar a seu favor no quadro da Guerra Fria, colocava em causa as leis segregacionistas que o país continuava a ter. E a partir de então a política norte-americana vai analisar estes movimentos anti-coloniais, a partir do seu peso e relação maior ou menor com o marxismo (Shepard, 2008: 83).
Em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe e apesar dos muros de silêncio de que falava Amílcar Cabral impostos pela ditadura salazarista a Portugal e ao seu império, nos anos 50 e sobretudo 60, vários movimentos urbanos, mais ou menos dispersos começavam através de várias formas a inscrever nas suas ações, nos seus textos, nas suas conversas e na expressão dos seus desejos a diferença cultural que a prazo iria reclamar a independência política. Eram movimentos muito heterogéneos que congregavam portugueses progressistas, nacionalistas angolanos brancos, negros e mestiços, em suma cidadãos ligados a associações culturais e desportivas, ou a bairros de habitação específicos, como por exemplo, o Bairro Operário, Makalusu de alguns musseques de Luanda, a associações urbanas de bairros como a Mafalala ou Xipananime. Tratava-se de intelectuais como Viriato da Cruz, Agostinho Neto e muitos outros nomes ligados ao movimento « Vamos Descobrir Angola », à Sociedade Cultural de Angola, à revista Cultura, ao Cineclube de Luanda e a alguns jornais, como o Jornal ABC, o Jornal de Angola, ligado à Associação de Naturais de Angola. O mesmo exercício poderia ser feito para Moçambique com o jornalismo dos Albasini a que se seguiram várias vozes poéticas e jornalísticas ligadas ao jornalismo, aos dos cine-clubes e outras áreas da cidade de cimento. Mais prematuramente em Cabo Verde ainda no final dos anos 30 intelectuais ligados à revista Claridade viriam a afirmar as especificidades de Cabo Verde e as suas múltiplas vozes que desaguaram mais tarde na revista Certeza com um caráter mais alinhado com o seu tempo. Nestas revistas, periódicos e outras publicações apareciam contos de Óscar Ribas, poemas de António Jacinto, ou contos e desenhos de José Luandino Vieira, José Craveirinha, Noémia de Sousa e tantos outros. Eram textos que falavam de um mundo que ia para além do mundo colonial. Falavam de uma cidade mestiça, dos musseques, das plantações e do trabalho forçado, das e desenhavam um mapa da cidade que denunciava a desigualdade, em que assentava a ordem colonial, falavam do trabalho e do racismo, das plantações e da vida sacrificada dos africanos lançando no ar um movimento de luta e de esperança por um nova ordem consentânea com a onda de libertação que se vivia no mundo pós Segunda Guerra Mundial. Neste sentido pela arte deram-se os primeiros atos de descolonização.
O que os unia afinal estes filhos da terra, os portugueses progressistas e outros inteletuais e trabalhadores? A consciência de ser angolano e a necessidade de o afirmar num ambiente hostil à diferença e altamente penalizador de quem a ousasse exprimir. Na sequência do chamado Processo judicial dos 50, em que muitos escritores, inteletuais ou políticos foram presos e condenados por as suas expressões colocarem em perigo a unidade da nação portuguesa, conforme entendido pelo regime, segue-se uma onda de repressão pela Polícia Política estimulada não apenas por estes movimentos dissidentes internos, nativistas e nacionalistas, mas também pela pressão externa a que a ditadura portuguesa estava sujeita nos organismos internacionais, como a ONU. A pressão era para que Portugal descolonizasse os territórios sob sua administração, o que levou o regime a proceder a uma reelaboração da Constituição Portuguesa assegurando uma cosmética mudança, que nada mudava na essência. Mais tarde face à instransigência do regime e com o início da guerra colonial em Angola em 1961, que depois alastrou a Moçambique e à Guiné-Bissau, o Estatuto de Indígena foi revogado e, à semelhança do caso francês na Argélia, todos os habitantes de Portugal e do seu império foram considerados cidadãos portugueses. Mas os “ventos da história” sopravam e em 25 de Abril de 1974, pela mão dos jovens militares que faziam a guerra nas colónias, deu-se o golpe militar necessário em Lisboa para terminar com a ditadura e com ela, com a guerra colonial e a libertação dos povos do jugo colonial. Em 1975 Portugal assinava com as diferentes colónias os acordos de independência e outros processos de descolonização e libertação se seguiram no continente nomeadamente no Zimbabwe e na África do Sul, a que não foram alheias as duras guerras civis de Moçambique e Angola, pela libertação total da África Austral.
Shepard, Todd (2008), 1962 – Comment l´indépendance de l´Algérie a transformé la France, Paris: Payot.
Vieira, José Luandino (2015), Papéis da Prisão – apontamentos, diário, correspondência (1962-1971), Lisboa: Caminho Leya. (organização: Margarida Calafate Ribeiro, Mónica V. Silva, Roberto Vecchi).
Margarida Calafate Ribeiro,
Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra.
Memoirs – Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias, ERC, 2015-2020
Este texto resulta do trabalho desenvolvido pelo projeto MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (ERC) no quadro do Horizonte 2020, programa para a investigação e inovação da União Europeia (contrato nº 648624).