Um dilema recorrente na teoria política diz respeito à difícil articulação entre o particular e o individual, onde os diversos particularismos identitários correm o risco de assimilação sob uma diferença universalizante, ao mesmo tempo que a livre afirmação de cada particularismo abre caminho a uma situação em que os diversos discursos minoritários se sobrepõem uns aos outros, ou então entram em conflito entre si (Young, 1990, pp. 4, 6, 13, 80-1). Perante a necessidade de lidar com a diversidade em sociedades cosmopolitas, tende a optar-se por uma de duas vias para assegurar a coabitação pacífica entre indivíduos que não partilham códigos culturais comuns entre si. São estas as vias do multiculturalismo ou então da integração (i.e. assimilação forçada).
O multiculturalismo pode ser definido como uma política de reconhecimento do direito à diferença por parte dos distintos grupos culturais ou étnicos que constituem determinada sociedade. Sem recorrer a uma imposição de formas normativas de pertença ao grupo nacional dominante, o multiculturalismo fundamenta-se num relativismo que reconhece a diferença como tendencialmente conduzindo a discriminações de vária ordem. Nesta perspectiva, a afirmação de um direito à diferença serve precisamente para proteger as minorias das potenciais iniquidades de uma democracia representativa que se baseia numa vontade maioritária. É esta a tradição da generalidade dos países anglo-saxónicos, a qual contrasta com a preferência integracionista da maioria dos países latinos com tradição colonial. No entanto, a crescente securitarização das sociedades em que vivemos, devido em parte à ubiquidade da ameaça terrorista, assinala uma viragem, em países de tradição multicultural, a que corresponde a adopção de uma política integracionista. Neste contexto, os direitos das minorias dependem cada vez mais da satisfação de precondições culturais das sociedades ocidentais, implicando a imposição de proibições ao nível de vestuário, símbolos religiosos e comportamentos ‘inaceitáveis’ à luz dos parâmetros da tradição judaico-cristã. Efectivamente, a base da nova política de reconhecimento corresponde a uma discriminação cultural pós-racial, pressupondo vivências culturais ‘correctas’ e ‘erradas’.
A ênfase em vivências culturais, por oposição a práticas racializadas, conduz-nos a uma situação em que o poder político deixa de prestar contas pela ausência de resposta a problemas que já não são vistos como políticos, mas antes como do domínio da cultura (Lentin & Titley, 2012, p. 127). Esta discussão sobre a crise do multiculturalismo é particularmente importante no actual contexto de migração sem precedentes para a Europa, crise essa que aparenta ameaçar o ideal de universalidade de direitos humanos que inspirara a formação da Comunidade Europeia no pós-guerra. O objectivo primordial da CE, à época, seria o de agir como contraponto aos nacionalismos e etnocentrismos particularistas que contribuíram para a eclosão da II Guerra Mundial. Esta aspiração foi reforçada pela configuração do Holocausto enquanto momento fundacional da ideia de civilização europeia, assente na multiculturalidade, e parte integrante da memória europeia.
Os objetivos da integração europeia afiguram-se assim como superando os estritamente económicos, procurando, acima de tudo, proteger a democracia pluralista, bem como o Estado de Direito, e obrigando os membros que aderem ao projeto europeu a respeitar tais princípios. Entre as razões que conduzem Habermas, por exemplo, a apoiar o projecto europeu, está o facto de muitos dos seus fundadores terem sido motivados pela memória imediata da guerra e da violência nacionalista, constituindo-se esta como força motriz para o desenvolvimento de formas pós-nacionais de solidariedade e segurança. A pós-nacionalidade remete para uma Europa cosmopolita, que estabelece mediação entre o nacional e o global, obedecendo a uma lógica cultural oscilante de constante auto-transformação, assente numa sociedade civil que se estende para além das fronteiras nacionais.
De acordo com Robert Young (1990, p. 4), foi a confrontação com a exigência do reconhecimento do outro, na Guerra de Independência da Argélia, que inspirou o pós-estruturalismo, com a rejeição da tendência assimiladora hegeliana – e marxista – de alteridades ‘antitéticas’. A tentativa de dar voz àqueles que não se encaixavam em categorias da política tradicional veio a enfatizar a especificidade de subjectividades de vária ordem, numa recusa de assimilação sob qualquer categoria universalista. Inspirados na promessa da liberdade que o pós-estruturalismo daria às minorias, os Estudos Culturais, surgidos num contexto britânico, enfatizaram a reenunciação de significantes em novos contextos, de modo a que adquirissem novos significados, como acto iminentemente político do ponto de vista quer simbólico, quer ideológico (Hall, 1991, p. 54). Black tornou-se assim uma categoria assimiladora da ‘enorme vaga de migração vinda das Caraíbas, África oriental, subcontinente asiático, Paquistão, Bangladesh e outras partes da Índia’ (Hall, 1991, p. 55) para o Reino Unido nas décadas de 50 e 60 do século XX. O que essas ‘minorias’ tinham em comum era a partilha de um sentimento de terem sido relegadas para as margens da sociedade.
Esta ligação entre identidade colectiva, fabricada, associada a uma política cultural de resistência, demonstra que a identidade, numa perspectiva de ‘democracia radical’, nunca é estável (Laclau & Mouffe, 1996, p. 48). Antes, é definida por conflitos constantes, podendo o indivíduo ocupar múltiplos posicionamentos contraditórios a qualquer momento (Hall, 1991, p. 57). A identidade assume-se então através de tomadas de posição diversificadas, alianças pontuais e estratégicas impulsionadas em parte por contingências históricas várias.
Hall, Stuart (1991) ‘Old and New Identities, Old and New Ethnicities’, in Anthony King (ed.) Culture, Globalisation and the World System. Contemporary Condition for the Representation of Identity. Londres: Macmillan, pp. 41-68.
Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal (1996) Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. Londres: Verso.
Lentin, Alana & Titley, Gavan (2012) ‘The crisis of “multiculturalism” in Europe: Mediated minarets, intolerable subjects’, European Journal of Cultural Studies, 15(2), pp. 123–138.
Young, Robert (1990) White Mythologies: Writing History and the West. Londres: Routledge.
Cláudia Álvares
CIC.Digital-ULHT e CIES-IUL