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Minorias (2017) #Epistemologias #multiculturalismo #integracionismo

Sobre o declínio da política numa era pós-racial: a crise da multicultura

Um dilema recorrente na teoria política diz respeito à difícil articulação entre o particular e o individual, onde os diversos particularismos identitários correm o risco de assimilação sob uma diferença universalizante, ao mesmo tempo que a livre afirmação de cada particularismo abre caminho a uma situação em que os diversos discursos minoritários se sobrepõem uns aos outros, ou então entram em conflito entre si (Young, 1990, pp. 4, 6, 13, 80-1). Perante a necessidade de lidar com a diversidade em sociedades cosmopolitas, tende a optar-se por uma de duas vias para assegurar a coabitação pacífica entre indivíduos que não partilham códigos culturais comuns entre si. São estas as vias do multiculturalismo ou então da integração (i.e. assimilação forçada).

O multiculturalismo pode ser definido como uma política de reconhecimento do direito à diferença por parte dos distintos grupos culturais ou étnicos que constituem determinada sociedade. Sem recorrer a uma imposição de formas normativas de pertença ao grupo nacional dominante, o multiculturalismo fundamenta-se num relativismo que reconhece a diferença como tendencialmente conduzindo a discriminações de vária ordem. Nesta perspectiva, a afirmação de um direito à diferença serve precisamente para proteger as minorias das potenciais iniquidades de uma democracia representativa que se baseia numa vontade maioritária. É esta a tradição da generalidade dos países anglo-saxónicos, a qual contrasta com a preferência integracionista da maioria dos países latinos com tradição colonial. No entanto, a crescente securitarização das sociedades em que vivemos, devido em parte à ubiquidade da ameaça terrorista, assinala uma viragem, em países de tradição multicultural, a que corresponde a adopção de uma política integracionista. Neste contexto, os direitos das minorias dependem cada vez mais da satisfação de precondições culturais das sociedades ocidentais, implicando a imposição de proibições ao nível de vestuário, símbolos religiosos e comportamentos ‘inaceitáveis’ à luz dos parâmetros da tradição judaico-cristã. Efectivamente, a base da nova política de reconhecimento corresponde a uma discriminação cultural pós-racial, pressupondo vivências culturais ‘correctas’ e ‘erradas’.

A ênfase em vivências culturais, por oposição a práticas racializadas, conduz-nos a uma situação em que o poder político deixa de prestar contas pela ausência de resposta a problemas que já não são vistos como políticos, mas antes como do domínio da cultura (Lentin & Titley, 2012, p. 127). Esta discussão sobre a crise do multiculturalismo é particularmente importante no actual contexto de migração sem precedentes para a Europa, crise essa que aparenta ameaçar o ideal de universalidade de direitos humanos que inspirara a formação da Comunidade Europeia no pós-guerra. O objectivo primordial da CE, à época, seria o de agir como contraponto aos nacionalismos e etnocentrismos particularistas que contribuíram para a eclosão da II Guerra Mundial. Esta aspiração foi reforçada pela configuração do Holocausto enquanto momento fundacional da ideia de civilização europeia, assente na multiculturalidade, e parte integrante da memória europeia.

Os objetivos da integração europeia afiguram-se assim como superando os estritamente económicos, procurando, acima de tudo, proteger a democracia pluralista, bem como o Estado de Direito, e obrigando os membros que aderem ao projeto europeu a respeitar tais princípios. Entre as razões que conduzem Habermas, por exemplo, a apoiar o projecto europeu, está o facto de muitos dos seus fundadores terem sido motivados pela memória imediata da guerra e da violência nacionalista, constituindo-se esta como força motriz para o desenvolvimento de formas pós-nacionais de solidariedade e segurança. A pós-nacionalidade remete para uma Europa cosmopolita, que estabelece mediação entre o nacional e o global, obedecendo a uma lógica cultural oscilante de constante auto-transformação, assente numa sociedade civil que se estende para além das fronteiras nacionais.

De acordo com Robert Young (1990, p. 4), foi a confrontação com a exigência do reconhecimento do outro, na Guerra de Independência da Argélia, que inspirou o pós-estruturalismo, com a rejeição da tendência assimiladora hegeliana – e marxista – de alteridades ‘antitéticas’. A tentativa de dar voz àqueles que não se encaixavam em categorias da política tradicional veio a enfatizar a especificidade de subjectividades de vária ordem, numa recusa de assimilação sob qualquer categoria universalista. Inspirados na promessa da liberdade que o pós-estruturalismo daria às minorias, os Estudos Culturais, surgidos num contexto britânico, enfatizaram a reenunciação de significantes em novos contextos, de modo a que adquirissem novos significados, como acto iminentemente político do ponto de vista quer simbólico, quer ideológico (Hall, 1991, p. 54). Black tornou-se assim uma categoria assimiladora da ‘enorme vaga de migração vinda das Caraíbas, África oriental, subcontinente asiático, Paquistão, Bangladesh e outras partes da Índia’ (Hall, 1991, p. 55) para o Reino Unido nas décadas de 50 e 60 do século XX. O que essas ‘minorias’ tinham em comum era a partilha de um sentimento de terem sido relegadas para as margens da sociedade.

Esta ligação entre identidade colectiva, fabricada, associada a uma política cultural de resistência, demonstra que a identidade, numa perspectiva de ‘democracia radical’, nunca é estável (Laclau & Mouffe, 1996, p. 48). Antes, é definida por conflitos constantes, podendo o indivíduo ocupar múltiplos posicionamentos contraditórios a qualquer momento (Hall, 1991, p. 57). A identidade assume-se então através de tomadas de posição diversificadas, alianças pontuais e estratégicas impulsionadas em parte por contingências históricas várias.

 

 

Referências:

Hall, Stuart (1991) ‘Old and New Identities, Old and New Ethnicities’, in Anthony King (ed.) Culture, Globalisation and the World System. Contemporary Condition for the Representation of Identity. Londres: Macmillan, pp. 41-68.

Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal (1996) Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. Londres: Verso.

Lentin, Alana & Titley, Gavan (2012) ‘The crisis of “multiculturalism” in Europe: Mediated minarets, intolerable subjects’, European Journal of Cultural Studies, 15(2), pp. 123–138.

Young, Robert (1990) White Mythologies: Writing History and the West. Londres: Routledge.

 

 

Cláudia Álvares

CIC.Digital-ULHT e CIES-IUL