A noção de «pós-memória», cunhada pela primeira vez por Marianne Hirsch em 1992-1993 no âmbito dos Estudos do Holocausto, é um conceito que se tem vindo a generalizar na academia e que hoje é aplicado em contextos geográficos, políticos e culturais muito distintos. Apesar disso, é um termo que está longe de ser consensual e existem questões problemáticas levantadas por vários investigadores e investigadoras, o que, contudo, não invalida a sua pertinência, sobretudo quando aplicado a determinados casos empíricos.
De acordo com a definição de Hirsch, pós-memória diria respeito aos atos de memória da segunda geração, aquela que não viveu o evento na pele, mas que, através de imagens e histórias que contam o violento passado da primeira geração, se constitui herdeira de uma memória partilhada com os seus antecessores:
«Pós-memória aponta para a relação da segunda geração com experiências marcantes, muitas vezes traumáticas, que são anteriores ao seu nascimento, mas que, não obstante, lhes foram transmitidas de modo tão profundo que parecem constituir memórias em si mesmas».
(Hirsch, 2008, p. 103, trad. de António Sousa Ribeiro, in Ribeiro, 2010, p. 14)
Apesar de considerar que existe algo de material que é passado de pais para filhos, Hirsch comunica-nos que aquilo que é legado se estabelece como uma ausência que, todavia, pode ser resgatada criativamente. A autora escreve, assim, que a geração da pós-memória é uma geração que, nomeadamente através de dispositivos familiares, se encontra apta a reconstruir e reparar um passado que não viveu, mas que pode imaginar e recriar através de artefactos culturais, proporcionando um espaço de encontro e de identificação entre as testemunhas dos acontecimentos e os que, por terem nascido depois, se encontram distantes temporal e espacialmente dos eventos recordados (Hirsch, 1996, p. 661-668).
No ensaio Second-Generation Testimony, Transmission of Trauma, and Postmemory, Ernst van Alphen levanta algumas questões que obrigam a repensar as premissas iniciais de que Hirsch parte para refletir sobre a pós-memória. O autor critica a «continuidade fundamental entre a primeira e a segunda geração» (van Alphen, 2006, p. 474) que o termo parece pressupor, quando, segundo o teórico holandês, o que existe é uma situação de rutura com as experiências dos predecessores, porque ele se refere não a um passado experienciado de facto, mas sim resultado de uma projeção imaginativa, o que atribui um carácter fundamentalmente diferente aos atos de memória e de pós-memória, respetivamente (idem, p. 487-488).
A pós-memória não é, assim, equivalente a uma memória meramente produzida depois de um evento violento e sem acesso ao conhecimento direto de quem o vivenciou. Também não diz respeito apenas a um ato de memória coletivo de cariz geracional. O termo é complexo; daí a sua natureza polémica, cuja discussão está longe de se esgotar neste verbete. Sheila Khan nota, por exemplo, a este propósito e de modo bastante pertinente, que a pós-memória não tem que se referir exclusivamente à transmissão de eventos traumáticos:
«Nem todas as experiências marcantes e traumatizantes são uma pós-memória, o monopólio da pós-memória não deve ser reivindicado apenas nesta ótica tão pessimista e negativa da partilha das memórias “traumáticas”. A pós-memória também assume outras abordagens mais romanticizadas e nostálgicas.»
(2016, p. 362)
Beatriz Sarlo, numa obra em que faz uma ampla crítica ao mesmo conceito, sublinha que é não tanto a noção de memória, mas sim o seu prefixo «pós» que necessita ser interrogado, uma vez que a dimensão de construção indireta advogada por Hirsch como característica intrínseca da pós-memória não é, nas palavras da investigadora, específica desta atividade:
«A construção de um passado por meio de relatos e representações que lhe foram contemporâneos é uma modalidade da história, não uma estratégia original da memória. O historiador percorre os jornais, assim como o filho de um sequestrado pela ditadura examina fotografias. O que os distingue não é o carácter “pós” da atividade que realizam, mas o envolvimento subjetivo nos factos representados.»
(2007, p. 94)
Deste ponto de vista, o contexto familiar, afetivo e pessoal funcionaria como condição fundamental no processo de reconstituição das experiências passadas e no envolvimento subjetivo com a histórias dos antecessores, o que, para Sarlo (2007, p. 97), é redutor, no sentido em que a construção identitária através de uma relação com o passado pode não se dar exclusivamente por via familiar, mas também através de memórias públicas produzidas noutras arenas e instâncias da sociedade. Desta forma, Sarlo opta por destacar o significado político da pós-memória, conferindo-lhe uma dimensão de clareza que Hirsch recupera em reflexões posteriores (cf. 2008).
Localizando a pós-memória no espaço dos fragmentos, dos vestígios, dos silêncios e das ausências – «[a pós-memória] cria onde não se pode recuperar. Imagina onde não se pode recordar. Faz o luto de uma perda que não pode ser reparada» (1996, p. 664) –, Hirsch enfatiza a capacidade de este trabalho empático se concretizar, por exemplo, na literatura, na fotografia ou no cinema, como testemunho indireto de um passado que urge ser compreendido, discutido e desconstruído no presente. Neste contexto, a pós-memória não representa a manifestação de uma resposta padrão ao sofrimento e à dor, mas um conceito produtivo para perceber de que modos as novas gerações se relacionam com as memórias herdadas do passado e depois as reconduzem e transformam dialogicamente entre os espaços privados, familiares e públicos.
van Alphen, Ernst (2006). «Second-Generation Testimony, Transmission of Trauma, and Postmemory», Poetics Today, 27(2), pp. 473-478.
Hirsch, Marianne (1996). «Past Lives: Postmemories in Exile», Poetics Today, 17(4), pp. 659-686.
Hirsch, Marianne (2008). «The Generation of Postmemory», Poetics Today, 29(1), pp. 103-128.
Khan, Sheila (2016). «A pós-memória como coragem cívica. Palavra de ordem: resistir, resistir, resistir», Comunicação e Sociedade, 29, pp. 353-364.
Ribeiro, António Sousa (2010). «Memória, identidade e representação: os limites da teoria e a construção do testemunho», Revista Crítica de Ciências Sociais, 88, pp. 9-21.
Sarlo, Beatriz (2007). Tempo Passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo e Belo Horizonte: Companhia das Letras / UFMG. Trad. de Rosa Freire d’ Aguiar.
Inês Nascimento Rodrigues
Centro de Estudos Sociais-Universidade de Coimbra. Projeto CROME – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio. As guerras coloniais e de libertação em tempos pós coloniais (European Research Council, StG 715593).