Contradições e paradoxos fazem parte do legado do colonialismo e permeiam, em consequência, toda a prática audiovisual no continente africano e, isto posto, também dos PALOP. Vale lembrar que eles ganharam suas independências com uma ou duas décadas de atraso quando comparado com os países anglófonos e francófonos. O audiovisual, devido à sua natureza tecnológica de produtor e reprodutor de imagens e sons, presta-se a muitas causas e narrativas de forma indeterminada. Teve papel importante na descolonização política. Na pós-independência mantem-se essa reivindicação, porém é diversificada. Por um lado, porque em seu processo civilizatório os estados modernos com monopólio de exercício do poder tomam nos PALOP a forma de regimes monopartidários, cuja autoridade não é mais a de colonizadores autoritários e opressores, porém segue novamente um modelo de centralização do poder que justifica e endurece a atuação política, também em nível audiovisual. Este processo é acirrado pela ameaça real à sua soberania, por exemplo, no caso de Moçambique, através da atuação da Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), apoiada pelos regimes brancos da África do Sul e da Rhodésia. Por outro, porque o audiovisual é utilizado como instrumento oficial em sociedades que precisavam unir pessoas das quais muitos ainda viviam de forma pré-industrial. O audiovisual permanece, por esse motivo, instrumento de luta, dissociável dos conflitos políticos e da construção de “comunidades imaginadas” nacionais (ANDERSON, 2008), e projetadas no contexto delas, tornando a emancipação dos povos anteriormente subjugados uma tarefa paradoxal senão impossível. É imprescindível, no entanto, reavaliar as iniciativas iniciais da descolonização do imaginário, como parte do “script da libertação” (COELHO apud SCHEFER, 2016), script este que procurava legitimar os novos regimes, sobretudo por meio de uma eficácia pedagógica, impossibilitando uma comunidade emancipada plena. As contradições entre o sucesso da luta armada contra o colonialismo e as dificuldades de garantir mentes livres por meio do audiovisual depois da institucionalização dos grupos libertários estão começando a ser apontadas, também como resultado da retificação da historiografia de Moçambique. Raquel Schefer (2016) resume a problemática e a importância do conceito da seguinte forma:
João Paulo Borges Coelho [2013, p. 21] considera que a história moçambicana foi codificada como um “Script de Libertação” através de um dispositivo epistémico historiográfico essencialmente oral que impôs ’um discurso estratégico situado na interseção das relações de poder e das relações de saber’. Esse discurso constitui um corpus narrativo fixo que visou consolidar e tornar incontestável a autoridade da FRELIMO. O “Script de Libertação” permitiu-lhe fazer da luta de libertação o discurso fundador da nação, fornecendo-lhe ’uma espécie de carta de navegação [sic] para governar o país.” Trata-se de um discurso caracterizado por oposições binárias e por uma progressão linear, simples e sequencial extremamente eficaz.
Raquel Schefer usa como exemplo do impacto desse “script” o filme Mueda, Memória e Massacre (1979) do cineasta moçambicano Ruy Guerra que havia vivido mais de duas décadas no Brasil onde participou do Cinema Novo. O estudo de Mueda, que consiste em uma colagem entre filmagem da representação do massacre pelos militares portugueses naquela vila, entrevistas a sobreviventes e imagens dos acontecimentos, possibilita compreender como o “script” influenciou e até levou a autocensura ou alterações do mesmo. Considerado, numa tentativa de construir uma história de cinema nos moldes ocidentais o “primeiro filme de ficção” de Moçambique, o filme costuma ser referenciado de forma elogiosa em todos os textos acerca do cinema moçambicano. Raquel Schefer (2014b ) descobriu, no entanto, que existem três versões do filme, sendo que as duas acessíveis foram realizadas sem a supervisão do realizador, como o objetivo de enquadra-lo na narrativa mestra da FRELIMO. Sendo assim, a autora presume que a versão original tenha-se oposta a essa narrativa, razão pela qual houve censura. A comparação das diferentes versões disponíveis já “permite-nos reestruturar o conflito estrutural entre o ‘Script’ e a Estética de Libertação” (SCHEFER, 2016), conflito este que permeia grande parte das atividades audiovisuais dos PALOP nesta primeira fase.
ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SCHEFER, Raquel. As imagens que faltam – As duas versões de Mueda, Memória e Massacre (1979-1980), de Ruy Guerra. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO DE INVESTIGADORES DA IMAGEM EM MOVIMENTO, 5., Lisboa, 2015. Actas. Lisboa: AIM, 2016.
Carolin Overhoff Ferreira
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), História da Arte