A palavra «tradição» é uma das mais referidas sempre que se fala ou escreve sobre as «sociedades africanas». Isto acontece ao mesmo tempo que raramente se sente a necessidade de explicar o que é que seria a tal «tradição africana», pois ela surge definida implicitamente pelo seu duplo: a modernidade. Assim, a tradição seria definida pela negativa como tudo aquilo que não está no campo da modernidade, sendo a modernidade entendida como um horizonte de progresso e desenvolvimento semelhante ao que impera nos países ocidentais, e no qual as diferentes sociedades africanas não teriam outra opção senão integrarem-se sem remissão.
Neste sentido, a tradição pertenceria ao passado que perdura, mas que está prestes a desaparecer, mais cedo ou mais tarde, em função do ritmo inexorável do progresso da Humanidade. Por exemplo, as superstições e violências praticadas contra pessoas indefesas, como consequência do peso inabalável das instituições locais, seriam práticas tradicionais. Mesmo quando é possível olharmos para algumas tradições com uma certa simpatia, como no caso dos chamados usos e costumes mais pitorescos ou folclóricos, é aceite que o seu registo e lembrança futura só vai passar pelas prateleiras dos museus de etnografia.
Esta maneira de pensar, infelizmente muito comum, reproduz os modelos coloniais de separação entre a civilização das potências imperiais europeias e as culturas colonizadas (Santos & Meneses, 2009). É um exemplo claro de como há mudanças de discurso que se ficam pela superfície. Contudo, apesar destas mudanças de vocabulário, estes discursos hegemónicos continuam reproduzindo uma relação de poder profundamente desigual e marcada por preconceitos de natureza epistemológica.
Ora, para que os conhecimentos e todo património cultural produzido fora da cultura hegemónica se possa libertar desta condição de subalternidade permanente, é necessário um duplo movimento. Primeiro, é necessária uma crítica explícita da camisa de força epistemológica que a modernidade ocidental exerce sobre as demais formas de conhecimentos alternativos. Os conhecimentos outros não são subsumíveis simplesmente na ideia de tradição, pois são tão complexos – e também tão limitados - como quaisquer outros conhecimentos humanos. Esta crítica já vem sendo feita há varias décadas por autores de diferentes procedências geográficas e comunidades linguísticas (Santos & Meneses 2009; Hart 2015). Também não se pode relegar ao passado nenhuma sociedade do tempo presente, pois é no presente comum que se devem aferir os méritos e potencialidades das diferentes epistemologias alternativas. Desta maneira evita-se que certos conhecimentos tenham o monopólio de falar pela condição humana, isto é, de falar como se existisse uma posição de «sujeito neutro e universal». É sabido que quem fala desde a ciência moderna – ou de um monoteísmo qualquer - tem o hábito de assumir esta condição de «sujeito neutro e universal», embora muitas vezes o faça sem ter consciência disso. Noutros casos, sim, há consciência dessa posição: nesses casos a arrogância cultural está tão assumida que considera óbvio que a sua cultura é superior às outras.
Chegamos então ao segundo movimento necessário. Apesar de todos os méritos que possa ter a cultura científica, democrática e liberal-progressista própria dos países ditos desenvolvidos, nem sempre é ela a mostrar a maior capacidade de inovação perante os problemas e conflitos que a maioria da população confronta no seu dia-a-dia, nos diferentes continentes. Cada vez existem mais estudos de casos pormenorizados (Homwana, 2002; Santos & Meneses, 2009; Hart, 2015) que mostram como sociedades do sul global conseguem dar respostas práticas a problemas ocasionados pelas desigualdades económicas crescentes.
São de facto as sociedades ditas tradicionais, situadas na periferia do sistema capitalista, as que mostram um dinamismo invulgar perante os desafios da modernidade. Graças a integrarem elementos vindos de fora numa grelha de significados própria, as suas instituições tradicionais às vezes conseguem reagir de maneira propositiva. Assim, por exemplo, muitas pessoas vulneráveis foram integradas socialmente graças aos espíritos modernos de que fala Alcinda Honwana (2002). Pessoas que, provavelmente, já estariam mortas, se tivessem ficado à espera dos serviços sociais do Estado moçambicano, ou da boa vontade das agências de solidariedade internacional, sendo ambos organismos conhecidos pelo seu funcionamento pesado e ineficaz. Outro aspeto que tem sido alvo de um longo debate é o casamento tradicional, conhecido por lobolo no sul de Moçambique. Estudos de caso recentes mostram que o facto de ser tradicional não impede a sua adaptação às novas circunstâncias socioeconómicas que foram aparecendo nos últimos séculos (Farré 2015).
Os exemplos multiplicam-se, mas a conclusão é a mesma: as sociedades que costumam ser classificadas como tradicionais são, entanto contemporâneas nossas, tão modernas como qualquer outra. Além do mais, a sua capacidade de atualização das tradições as dota de maior agilidade na procura de soluções inovadoras. Dito isto, também é necessário dizer que, pela mesma razão, quando estas sociedades se tornam agressivas e excludentes praticam uma violência simbolicamente muito sofisticada, e por isso surpreendentemente cruel.
Farré, A. (2015), “Women as mediators ins postwar Mozambique. Pushing lololo from price to propriety”. In: Keith Hart (ed.), Economy for and against democracy. New York: Berghahn. pp. 83-102.
Honwana, A. (2002). Espíritos vivos. Tradições modernas: Possessão de Espíritos e Reintegração Social Pós-Guerra no Sul de Moçambique. Maputo: Promédia.
Santos, B.S.; Meneses, M.P. (orgs.). (2009). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina.
Albert Farré
Centro de Estudos Sociais-Universidade de Coimbra. Projeto CROME – Memórias Cruzadas, Políticas do Silêncio. As guerras coloniais e de libertação em tempos pós coloniais (European Research Council, StG 715593).