A violação é provavelmente uma das metáforas do colonialismo mais generalizadas. Enquanto representação simbólica da apropriação e conquista territorial (Ribeiro, 2006), surge numa vastidão de discursos que vão das palavras de líderes históricos como Nehru às mais diversas produções literário-culturais, passando pela análise histórico-cultural. A esta dimensão metafórica subjaz uma realidade concreta. Os processos de ocupação colonial foram acompanhados por violações em larga escala de mulheres colonizadas – não se deverão ignorar, todavia, as violações de crianças e homens - e por formas estruturais de violência sexual, normalmente dentro de um sistema mais vasto de exploração laboral.
O tráfico de pessoas escravizadas, processo que acompanha os primeiros séculos do colonialismo europeu no território africano, atesta precisamente esta persistência da violação. Em todas as suas variantes geográficas (sociedades coloniais no espaço africano, tráfico de mão de obra para as metrópoles, colonização das Américas) bem como nas diversas fases do processo em causa (captura, transporte, exílio), se assiste a uma naturalização da exploração laboral conjugada com violência sexual como parte integral das relações poder que dominam as pessoas escravizadas e os seus descendentes também escravizados e/ou sujeitos a posteriores formas de opressão. Nga Muturi (1882), novela de Alfredo Troni que tem como referente a sociedade mestiça da Luanda oitocentista, evidencia a naturalização da apropriação do corpo feminino colonizado no discurso colonial. É significativo que a palavra violação esteja ausente do texto e que a violência sexual seja representada num tom de ligeireza ou através de eufemismos (por exemplo, as violações da criança escravizada são resumidas em “brutais sofrimentos todas as noites”). Uma leitura feminista identificará certamente no texto a inadequação (ou antes incompletude) de uma definição de violação enquanto resistência a um ato sexual forçado, apontando, em contrapartida, para a necessidade de se articular a violação como algo indissociável do contexto estrutural, das relações de poder e da economia das sociedades coloniais. Uma leitura crítica da novela permite evidenciar igualmente a fluidez entre violência e agência da vítima num contexto em que a sexualidade funciona como processo disciplinador de subjugação do corpo colonizado feminino e consequentemente como pedra basilar da colonização. A protagonista busca a proximidade física do agressor/violador como forma de sobrevivência, proteção e ascensão social, num percurso de progressiva assimilação cultural que culmina no esquecimento da sua vida anterior, preterida a favor da sociedade colonial luandense.
Não surpreende assim que a literatura anticolonial denuncie a exploração sexual das mulheres colonizadas e torne a metáfora da violação um tropos central na luta de libertação. Os estudos sobre violência sexual da segunda vaga feminista vieram salientar o papel do patriarcado nas violações em conflitos armados, políticos e sociais. É por as mulheres serem consideradas propriedade masculina (filhas, irmãs e esposas) que a sua posse e humilhação sexual é tão eficaz a reclamar vitórias. A fobia tão persistente do colonizado violador enquanto medo da revolta do oprimido entende-se através deste subtexto do corpo feminino como campo de batalha (veja-se, por exemplo, The Tempest de Shakespeare ou A Passage to India de E.M.Foster). Estudos feministas mais recentes, em grande parte provenientes da área do racismo, salientaram a necessidade de uma perspetiva intersecional que atenda à forma como as perceções de identidades raciais são fundamentais na implementação e manutenção de sistemas de opressão sobre os corpos colonizados ou construídos discursivamente como racialmente diferentes/inferiores.
Ainda que a metáfora da violação permita desvendar uma realidade de violações e exploração sexual dos povos subjugados, a mesma metáfora não está imune a potenciais processos de silenciamento. Como qualquer metáfora corre o risco de, ao se tornar “signo de”, diluir o seu referente. Sarah Deer (2015) salienta a necessidade de olhar a violação de mulheres indígenas no espaço norte-americano não como uma mera metáfora do colonialismo, mas como algo integral ao colonialismo e sobretudo como uma realidade atual resultante de um processo histórico com determinadas estruturas sócio-económicas, decisões políticas e legislações.
Para além disso, há que notar que os sistemas de opressão e conflito tendem a fomentar também outras constelações de violência sexual para além de “homem colonizador/mulher colonizada”: violações dentro do mesmo grupo, violações de cariz homossexual, violações de mulheres do grupo dominante como forma de imitação e/ou retaliação. A metáfora não só poderá ofuscar casos que não se encaixam na constelação dominante, como ainda poderá incentivar hierarquias de reprovação da violação em função da legitimidade do projeto político do grupo a que pertence o agressor sexual. Há que atender igualmente à persistência da violação nos mais diversos tempos históricos e modelos de sociedade, o que sugere a necessidade de, pelo menos, articular a crítica ao colonialismo com a análise do patriarcado e das suas formas normativas de sexualidade. Tal implica também que a dimensão íntima da experiência e o dano provocado individualmente pela violação não poderão ser secundarizados na análise sócio-cultural. Sara Suleri notou como o tropos do colonialismo como violação, sustentado por uma feminilização do território, não é “culturalmente libertador”, denunciando: “the obsolescence of the figure of rape is too naked in its figuration to allow for a sustained reading of the valences of trauma that the sexual symbolism of colonialism indubitably implies" (Suleri, 1992: 16-17).
Nos encontros da rede de investigação SVAC-Sexual Violence in Armed Conflict (http://warandgender.net/about/), Gaby Zipfel reiterou a questão “What is sexual about sexual violence?”. Qualquer análise de violência sexual em contexto colonial deve atender à sexualidade como algo moldado por imaginários culturais, relações de poder, pressões político-económicas, mas que é experienciado antes de tudo por um corpo individual, ou antes por corpos que dificilmente poderão ser representados na sua complexidade e diversidade por uma metáfora uniformizadora.
Ribeiro, Margarida Calafate (2006), “Lusos amores em corpos colonizados. As mulheres africanas na literatura portuguesa da guerra colonial”, Ellipsis, 4, 131-147.
Deer, Sarah (2015), The Beginning and End of Rape, University of Minnesota.
Suleri, Sara (1992), The Rhetoric of English India, University of Chicago Press.
Júlia Garraio
CES, Investigadora Memoirs – Filhos de império e pós-memórias europeias, ERC
Este texto resulta do trabalho desenvolvido pelo projeto MEMOIRS – Filhos de Império e Pós-memórias Europeias, financiado pelo Conselho Europeu para a Investigação (ERC) no quadro do Horizonte 2020, programa para a investigação e inovação da União Europeia (contrato nº 648624).